Resumo para não especialistas
Este artigo promove uma reflexão da leitura do cinema, especialmente do live action Branca de Neve, dos estúdios Disney, de 2025. Vamos, aqui, nos indagar sobre as representações dos anões que, não sendo personagens de verdade, humanos, foram feitos por tecnologias de inteligência artificial. Neste artigo, ler o cinema, e especificamente, ler os anões de Branca de Neve, fazem ver que os contos de fadas perpetuam certos preconceitos como: o uso do anão para fazer rir, a não-preferência de humanos para atividades artísticas, além de questões políticas que, por preferência de certos grupos (não anões, por exemplo, dentre outros) tornam o longa-metragem da Disney uma obra que não é entretenimento, mas uma obra que menospreza certos sujeitos, com suas lutas…
Resumo para não especialistas
Este artigo promove uma reflexão da leitura do cinema, especialmente do live action Branca de Neve, dos estúdios Disney, de 2025. Vamos, aqui, nos indagar sobre as representações dos anões que, não sendo personagens de verdade, humanos, foram feitos por tecnologias de inteligência artificial. Neste artigo, ler o cinema, e especificamente, ler os anões de Branca de Neve, fazem ver que os contos de fadas perpetuam certos preconceitos como: o uso do anão para fazer rir, a não-preferência de humanos para atividades artísticas, além de questões políticas que, por preferência de certos grupos (não anões, por exemplo, dentre outros) tornam o longa-metragem da Disney uma obra que não é entretenimento, mas uma obra que menospreza certos sujeitos, com suas lutas e causas (os anões, por exemplo, e as mulheres que não portam corpos de beleza padrão), ao colocar como protagonistas, personagens estereotipados, isto é, feitos sob a métrica de corpos padrões.
Introdução
Este artigo debruça-se sobre um modo particular de aplicar o conceito de leitura do mundo, de Paulo Freire, imbricando teorias da Semântica Argumentativa e Análise de Discurso francesa, tal como temos desenvolvido e proposto em Machado (2024). O objetivo é, portanto, aprofundar o conceito de ler contos de fadas – pela nossa perspectiva, sempre social e política – à luz das contribuições de Paulo Freire, sobretudo, valendo-nos de uma forma específica de ler o mundo, aos cuidados argumentativos, discursivos e freireanos.
Para o cuidado argumentativo, consideraremos epistemologias de Ducrot (1987) e Carel (2011) sobre a linguagem e a enunciação; Para o cuidado discursivo, consideraremos a historicidade da/na linguagem e no seu uso; E para o cuidado freireano consideraremos, sobretudo, uma tripla temporalidade de um passado de luta social e política, um presente dessa mesma luta, e uma perspectiva futura dessa mesma luta. Ler um conto de fadas, e aqui um live action, é produzir sentidos sócio-políticos nessa envergadura social, política que, longe de simples entretenimento, (res)significa grupos sociais, suas práticas e culturas, sempre em luta, isto é, menosprezando certos sujeitos (por exemplo, sujeitos com nanismo) e privilegiando outros (sujeitos defensores de certa estética belo-europeia e acrítica).
Nossa metodologia consistirá em refletir o conceito freireano de leitura do mundo, sugerindo-lhe três passos de aplicação. Nesses três passos, interessa-nos sobretudo a produção de sentidos políticos e sociais, e historicidades dessa dinâmica. O que significa que o ato de ler, para nós e para nossa metodologia é uma construção política, no sentido particular de explicitar dinâmicas de sujeitos opressores – por exemplo, sujeitos agentes da disneyficação – versus sujeitos oprimidos – por exemplo, sujeitos representados com nanismo de performance circense. Ambos constitutivos do live action Branca de Neve (WEBB, 2025).
1. A leitura de mundo de Freire: a proposta de uma aplicação linguística
O tema “leitura” não é objeto isolado em si nas obras de Paulo Freire. Ler é um fenômeno pensado ao longo de sua produção. Contudo, uma definição clássica (Freire, 1982, p. 9, grifos nossos) de leitura do mundo nos é inicialmente pertinente:
A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele.
Nossos grifos irão marcar procedimentos de análise: segundo Freire (1982), o leitor lê o mundo quando procede a gestos precedentes, gestos contínuos e gestos posteriores. Dito tecnicamente, desenvolvemos essa proposta por base linguística, ao lecionar que o fenômeno da leitura, em Freire, tem ao menos três gestos: a leitura precedente, a leitura posterior, e a leitura contínua. Obviamente, essa divisão não é estanque na sua prática, e é apenas analítica.
Outro ponto fundante de nossa postura teórica, é que estamos falando de um conceito de *político *do conceito de ler. Isto é, para além dos pressupostos argumentativos e discursivos aqui assumidos, acentuamos sobretudo que ler é sobretudo conscientizar-se para transformar o mundo. Como bem explica Freire (1996, p. 40):
Ler e escrever as palavras só nos fazem deixar de deixar de ser sombra dos outros quando, em relação dialética com a ‘leitura do mundo’, tem de ver com o que chamo de ‘re-escrita’ do mundo, quer dizer, com sua transformação.
Lê-se para engajar-se em certa transformação social. Além disso, os leitores atentos das teorias Semântica Argumentativa e Análise de Discurso perceberão a possibilidade de diálogo entre tais teorias e Freire (1982), porque tais teorias também consideram uma anterioridade (por exemplo, o interdiscurso para a Análise de Discurso e a pressuposição – histórica e intertextual – para a Semântica Argumentativa). A diferença, ou contribuição freireana, é que o passado é deflagrado para transformar o presente e o futuro, como mostra esse excerto acima.
Nosso objetivo, aqui, não é teórico, ao triangular aproximações e distanciamentos teóricos, o que já fizemos em outras ocasiões (Machado, 2019; Machado, 2024). Nosso objetivo é analisar um corpus feérico, a representação do sujeito com nanismo no live action (os sete anões), à luz dos conceitos de ler contos de fadas (sempre sócio-politicamente, como defendemos) e ler o mundo (pelos gestos de leitura precedente, contínua e posterior, que propomos à luz de Paulo Freire). Assim, por um método de aplicação tripartide da leitura desenvolvido por nós, nada lógico e nada estanque ou limitado, para nós, ler trata-se da produção dos sentidos sócio-políticos via gestos de análise que deflagrem “um antes”, “um agora” e um depois”, que juntos são o efeito de leitura, ou simplesmente a leitura. Leitura essa que precisa engajar-se em dinâmicas transformadoras (porque, para Freire, lê-se para transformar o mundo).
Assumimos, em conjunto com Freire (1982), Ducrot (1987) e Pêcheux (2008, 2009) portanto, que o gesto de leitura extrapola os limites da textura (assumimos pressupostos da linguística textual que se afasta da concepção de texto enquanto “aquilo que tem limites exatos de começo, meio e fim”). Conclamamos, assim, para o gesto de ler e de ler um texto, materialidades abstratadas não-ditas, mas significadas de alguma forma. É essa leitura do invisível extra-textura que nos interessa, e que deflagaremos pelo conceito de *leitura de mundo *por aplicação linguístico-argumentativa, discursiva e freireana.
2. Disneyficar – ou não transformar o mundo
Se para Freire lê-se para transformar o mundo, criticamente, para a Disney, lê-se para não mudar o mundo, preservando estereótipos e significações antigas, significações que beneficiam certos sujeitos. Por exemplo, como adverte Coyne et al (2016), lê-se certo conto de fadas para perpetuar que princesas, como Branca de Neve, devem ser magras, belas, em beleza padrão europeia, do tipo branca, macérrima, traços finos, tez clara, dentes corretos, nariz pequeno etc[1]. Estética que fomenta o mercado da cosmética e privilegia quem pode pagar por um corpo inalcançável. Já à luz de Freire, lê-se as princesas para problematizar essa beleza principesca: “deve-se ser bela para agradar a quem?” ...
De outra ponta, é interessante considerar que ler contos de fadas é, já perpassar uma recepção e aprovação de público em geral (Coelho, 2020): a linguagem das fadas (arquétipos de Branca de Neve, de bruxa, de anões etc, como propõe Von Franz (1995) já estão previstos em uma linguagem partilhada universalmente (o que Ducrot (1987) chama de significação, partilha estagnada, convencional). Mudar essa significação, isto é, enunciar essas significações convencionadas por versões atuais, à luz de problemáticas sociais e históricas e atuais, como imigrantes, inclusão, tentativa de esquivar-se de preconceitos par com anões etc (o que Ducrot,1987,chama de sentido, resultado do uso), já direciona o sentido para: boa obra ou má obra. O povo “leitor” – certa comunidade linguística que partilha significações convencionais – é quem, portanto, legitima o conto de fadas moderno, porque participa, com seus valores – e isso é leitura, e é leitura de contos de fadas.
Daí haver já, previamente, quem ratifica e quem retifica o novo live action de Branca de Neve. As empresas Disney profissionalizaram-se nesse “termômetro social”, já que a atenção à recepção de uma obra não significa necessariamente ética ou respeito, mas significa primariamente lucro, uma vez que os mecanismos empresariais e neoliberais atuais especializaram-se “naquilo que o povo quer ouvir para vender o que o que o povo quer ouvir”. Temos defendido, que a Disney prevê um cliente, e não um sujeito crítico: contos de fadas disneyficados devolvem ao consumidor (e não a um sujeito) a ideologia pretendida imaginada naquele produto vendido. O que requer sua aceitação prévia. É essa aceitação prévia o argumento que orientou o resultado final do live action de Branca de Neve (2025), bem distinto dos roteiros originais.
A disneyficação[1] – termo caro aos analistas feéricas, portanto, não tem compromissos sérios com a criticidade que seus personagens geram, mas com o mercado que seus personagens fomentarão. O que nos interessa nesse modo de enunciar contos de fadas, disneyficando-os, é a acriticidade por eles produzida, como temos defendido (Machado, 2024, p. 18):
no que nos interessa, trata-se de enunciar os contos de fadas controlando seus sentidos, e deixando esses sentidos disneyficados, isto é, sempre ingênuos e superficiais, seguros de outras interpretações possíveis. E nessa alienação as massas compreendem contos de fadas.
3. A perpetuação dos sujeitos invisibilizados: os anões disneyficados
Passemos ao gesto de aplicar o conceito de *ler contos de fadas *(sócio-politicamente, como temos proposto) ao sujeito “anão”, no live action de Branca de Neve (Webb, 2025). O que faremos operando o corpus dos “anões” do live action por uma apropriação argumentativa e discursiva do conceito de leitura de mundo, de Paulo Freire.
3.1. A leitura precedente: o nanismo e sua dura luta histórica para poder existir
Ler o símbolo “anão”, no longa-metragem Branca de Neve (WEBB, 2025), significa, primeiro, realizar um gesto de leitura precedente, nos termos de Freire (1982), que vem antes do conto, o que o mundo diz sobre os anões (nos mitos, lendas nórdicas e germânicas, como peritos na forja, tal como Thor lhes deve seu famoso martelo. Como temos dito (Machado, 2024), “são associados tradicionalmente ao trabalho, particularmente à mineração porque, sendo artífices de metais, preferiam trabalhar em galerias subterrâneas onde a terra escondia preciosos tesouros”. A leitura precedente também significa conhecer outras versões de Branca de Neve, e outros modos de considerar os anões, nosso objeto de recorte.
Ao linguista ou literato atento, é perceptível que o gesto de leitura precedente freireano pode, à primeira vista, coincidir ou conforma-se ao conceito de intertexto, ou conceito de interdiscurso. O que é parcialmente verdadeiro. O que Freire (2017) leciona é que o conceito de história – aqui deflagrado pelo conceito de leitura precedente – não se resume apenas na “visita a um outro texto” (o intertexto) ou na visita a um “já dito” (interdiscurso pecheutiano). O conceito de história de Freire (2017)[1] revela, nos textos visitados ou já ditos em memória, a luta histórica de um povo. Pois, em Freire (2017), é a luta que dá identidade a certo sujeito. Assim, os anões são o que são pelas suas lutas precedentes que lhes identificam, lhes dão essência e, semanticamente, lhes dão significado (DUCROT, 1987).
É, contudo, gravosa a leitura precedente do sujeito anão, porque conduz o leitor a uma história de luta e resiliência do nanismo frente ao preconceito histórico que os anões sofreram (e sofrem) ao longo dos séculos, o que afeta o ato de ler esses anões, hoje. Uma leitura mais cuidadosa não escapará da leitura precedente de um passado de difícil existência dos anões, inscrito em espessuras dolorosas de uma existência social, “marcadas pelo estigma e marginalização do desigual inferiorizado, caracterizadas por episódios cotidianos de sangue, dor, fome e luta desigual pela sobrevivência e contra a higienização do atípico” (Machado, 2024). Assim, a história dos sujeitos anões, ou sua leitura precedente, expõe uma prática histórica circense e de exposições em shows de aberrações, perpetuando a significação (o semântico partilhado, universalmente) da inferiorização do nanismo, ou naturalização do preconceito ao nanismo, ou o preferido da Disney da década de 30: o nanismo enquanto objeto do riso, que refletiremos abaixo.
Contudo, ainda é importante considerar o papel de respeito que os anões cunharam nos contextos da mitologia e da antiguidade. Sua função de apoio ao sucesso é rememorada, por exemplo, ao forjar o martelo de Thor e em forjar e construir peças preciosas de toda natureza, para protagonistas triunfarem suas lutas. Oliveira (2022, s.p.) destaca o nanismo enunciado por Tolkien, pelas significações de “coragem, perseverança, lealdade nas batalhas e personalidade forte”, como ela mesma descreve:
Diferentemente de caricaturas populares de ridicularização de pessoas com nanismo, Tolkien descreve a criação destas para serem fortes, amadas e ensinadas por Aulë, a tal ponto de terem um idioma próprio. A criação foi dos Sete Anões. O número sete é emblemático na literatura de Tolkien. Significa a vida, a ordem, a completude e a evolução (OLIVEIRA, 2022, s.p.).
A autora apresenta inclusive, no site do Instituto Nacional de Nanismo, uma imagem que antecede seu artigo, e que designa o nanismo valorizando-o na característica de guerreiro, refutando a leitura precedente disneyficada em caricatura:
Figure 1. Figura 1. Nanismo Brasil (2022).
Pela leitura precedente vislumbramos, portanto, que o nanismo possui tanto um respeito histórico-literário, quanto uma história de dura vida social marginalizada em espetáculos circenses e exposições como aberrações. E qual das duas leituras precedentes o live action de Branca de Neve, de 2025, mobiliza? Veremos que é a palhacesca, ratificada pela mundialidade, em 1937, e continuada no atual live action, que veremos.
3. 2. Branca de Neve de 1937: os anões enquanto objeto do riso – estratégias para naturalizar o preconceito
O eco semântico da leitura precedente do preconceito histórico ao nanismo é reforçado pelo longa-metragem premiado da Disney, em 1937.
Ainda na leitura precedente, anterior ao live action que refletiremos, temos os anões de 1937 com valores/significações que anulam o respeito e admiração mitológicos, na sua maioria (Ducrot (1987) e Carel (2021) diriam, pela polifonia, que a voz mitológica do anão, que o valoriza, é excluída nessa animação). Resta a positividade do trabalho pesado, que ali valorizava os anões, e ação pelas quais eles são conhecidos e, sem deixar de lado, a propaganda capitalista, nunca deixada de lado.
Supervalorizando o trabalho somado ao anfitrionato, os anões disneyficados da m Branca de Neve da década de 30 são palhaços, criticados por Bettelheim (2002), cujo valor tem ápice em atuações palhacescas, de estética circense, inclusive, inventando-se nomes próprios da cultura de circo, à guisa de trejeitos repetidos ou comportamentos: Soneca, Dengoso, Feliz, Atchim, Mestre, Zangado e Dunga (Ducrot (1987) diria, pela polifonia, que a voz circense do anão, que lhe lega o lugar do riso, é posta nessa animação). Assim, pela leitura precedente de Branca de Neve de 1937, a Disney apaga o valor mitológico nobre do anão e promove o retorno ao circo histórico os anões, como observamos nos recortes:
Figure 2. **Figura 2. **Snow White (Disney, 1937).
Se a leitura precedente não tem exatamente um compromisso com um conto específico, porque é de natureza dispersa, a leitura posterior reclama um conto específico, porque lida com a palavra (no vocabulário de Freire, 1982) ou o enunciado (no nosso vocabulário, de Ducrot, 1987).
3. 3. A leitura posterior
A leitura posterior ocupa-se localizadamente da textura em tela, aqui o nanismo no live action de Branca de Neve, sempre afetada pela leitura precedente. Assim, debruçar-nos-emos agora sobre as representações dos anões enunciados no live action de Branca de Neve de Webb (2025).
É ainda produtivo pontuar que, para ler tais personagens, devemos levar em conta sua polêmica criação. Após críticas do afamado ator Peter Dinklage, as empresas Disney sentiram-se forçadas a repaginar seus roteiros iniciais e, pressionada por grande público e fãs em vários países, decidiram finalmente em não dar o papel para nenhum ator, mas construir os sete anões com nanismo por tecnologias de CGI[1]. Por uma leitura crítica percebe-se que é difícil, claro, colocar qualquer ator, qualquer nome, em lugar circense. Manteve-se, portanto, o lugar circense – os anões – mas evitando-se uma particularidade de algum ator, que poderia fomentar ainda mais a polêmica.
Fato é que não há novidades grandes ou repaginações diferentes daquelas de 1937: temos ainda sete caricaturas, com os mesmos nomes caricatos, que preservam seus números circenses, tal como dormir mesmo diante do susto de encontrar Branca de Neve:
Figure 3. **Figura 3. **Snow White (Webb, 2025).
Tal como o tradicional número de ter um bicho ou algo engraçado na cabeça, aqui um esquilo:
Figure 4. Figura 4. Snow White (Webb, 2025).
E tal como apresentar exageros próprio da caricatura histórica, como orelha grande, nariz grande, barriga grande:
Figure 5. Figura 5. Snow White (Webb, 2025).
E ainda com uniformes engraçados, mais para identificá-los em um grupo cômico que para caracterizar os sujeitos trabalhadores da época (que deveriam vestir-se em trapos, carregar sujeiras de carvão e cansaço físico, dentre outras características):
Figure 6. **Figura 6. **Snow White (Webb, 2025).
E mantendo, finalmente, seus nomes de palhaços – determinamos por dinâmicas ou trejeitos – marcados nas mesmas camas, que apenas reproduz, sem mudanças significativas, a cena da futura mulher que se ocupará do lar, e, portanto, não deve sair de casa, que é descoberta pelos homens, responsáveis pelo trabalho, e por isso autorizados a sair de casa (servidão doméstica de um grupo de sete homens, mas enunciada de modo desejável, desrealizada da negatividade, como diria Ducrot, 1987):
Figure 7. **Figura 7. **Snow White (Webb, 2025).
Tais significações, enunciadas imageticamente, e produtivas quando perpassam esses dois passos metodológicos, a leitura precedente e a leitura posterior, inauguram o gesto final de análise, a leitura contínua.
3. 4. A leitura contínua
Do confronto entre leitura precedente de “valorização mitológica do anão, e suas lutas frente ao estigma e marginalização social” versus a leitura posterior do live action da “desvalorização circense do anão, e suas perpetuações de estigma e marginalização social”, produzem-se sentidos de uma leitura contínua do nanismo, aquela que “não acaba”, que continua na vida do leitor, e que conclama a uma transformação do mundo, (já que ler, para Freire (1982), é projeto de conscientizar-se e engajar-se na transformação do mundo).
O choque significativo do heroico mitológico versus o sujeito infantilizado e caricaturado para rir, orienta para o papel da criticidade no *live action. *Orienta também para o convite a propostas de transformação do mundo, sobre o nanismo, que continuará a leitura – daí leitura contínua –. Daí a pergunta chave, que a leitura contínua suscita em debate:
por que ninguém pode ocupar o lugar do anão, em Branca de Neve, a ponto de forjar um CGI nesse papel?
(Não) Ser anão, em Branca de Neve, é possuir qual valor? (as perguntas, em Freire, fazem parte do método de leitura). O nanismo, hoje, significa protagonizar ou coadjuvar o que e com quem? Como confrontar e recriar, à luz de valores atuais, uma cultura do preconceito em cultura da inclusão social, enquanto leitura contínua da luta do sujeito com nanismo, nas sociedades?
4. Conclusão
Nossa discussão tem cunho teórico no que tange à uma proposta de aplicação do conceito complexo, amplo, interdisciplinar e nada lógico de *leitura do mundo. *Propomos um procedimento triplo – leitura precedente, leitura posterior e leitura contínua – afetados por preocupações linguísticas, próprias da semântica e do discurso, à luz de autores como Ducrot (1987) e Pêcheux (2008), dentre outros.
Ao propor uma operação em tríade não pretendemos esgotar um conceito que em si é inesgotável: a leitura. Mas propomos, sim, um modo de poder navegar em espessuras paradoxais, tênues e turbulentas, que fundam a semântica. Para Freire (1982), ler é produzir sentidos sobre a linguagem do/no mundo, e ser produzido enquanto sujeito (oprimido? Privilegiado?) nesse processo. A questão toda nasce dessa consciência. Daí os contos de fadas tornam ferramenta política poderosa, porque constitui-se de instrumento de conscientização, como temos defendido.
No que tange ao corpus, as representações (leituras) dos sujeitos com nanismo no live action disneyficado de Webb (2025), a polêmica sobre dar voz, e que tipo de voz, para sujeitos com nanismo, revela uma discussão discursiva que requer leitura refinada, precedente, posterior e contínua. Ou como temos dito (Machado, 2024), a polêmica tem trocado uma causa nobre pela mera possibilidade de manter ou não a participação de sujeitos anões no remake, enquanto poderia propor a continuidade consciente – uma leitura contínua – da questão semântica da presença do anão: a questão do respeito para com os anões não se soergue sobre sua presença, mas sobre como ele é dito no conto de fadas
Finalmente, a leitura deve ultrapassar o sedutor universo da arte, expertise das empresas Disney, para gestos de leitura crítica por sobre espessuras enunciativas do tipo política e social, como produzir opinião sobre lançar mão de certos contextos amplos: como podemos ler os grupos sociais dos camponeses (anões) e da monarquia (Branca de Neve)? Os anões são arquétipos de camponeses patriarcais, que historicamente têm dura lida de trabalho e não há mulheres na sua micro-sociedade porque elas, historicamente, têm que trabalhar em casa.
A animação perpetua e vende essa doxa (significações que compõem o senso comum) enquanto “normalidade”, pelo modo de dizer de desenhos infantis circenses, como vimos, “engraçadinhos”, com “carinhas fofinhas” – como os anões Disney são apresentados. Temos concluído (Machado, 2024) que o sujeito falante Disney diz, pelos locutores anões, que vale a pena entregar-se ao trabalho duro, que é virtude o cotidiano explorador dos anões, que há dignidade em reduzir-se a uma existência braçal, e entregar-se a uma vida de trabalho duro e insalubre no campo e nas minas – trabalho tradicional e culturalmente másculo na época. E nessa alegria de cantar sua exploração, os anões vivem o contexto da falta de alguém para a lida do lar, porque significaria ter que trabalhar menos para ocupar-se com lidas domésticas.
Para além do remake (porque o live action não se limita em si, mas recorta a miríades de versões dispersas, conhecidas e não conhecidas, e essa dispersão é a condição da leitura), a mulher doméstica significa, em Branca de Neve, a possibilidade para o homem camponês trabalhar mais, ser mais explorado, porque não precisa ocupar-se da casa.
Carel (2011) diria, tecnicamente, que se trata dos aspectos recíprocos fundadores sociais da época: [existência de mulher doméstica, portanto, maior garantia de exploração de trabalho do homem] e sua negativa: [NEG-existência de mulher doméstica, portanto, NEG-maior garantia de exploração de trabalho do homem][1]. E, obviamente, essa leitura política e social é apenas uma das muitas vozes possíveis nesse conto. Como leremos a totalidade desse filme, por um gesto de leitura contínua? Para transformar o/qual mundo?
Informações Complementares
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O autor não possui conflitos de interesse a declarar.
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Declaração de Uso de IA
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Referências
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Avaliação
DOI: https://doi.org/10.25189/2675-4916.2025.V6.N5.ID828.R
Decisão Editorial
EDITOR 1: Tiago de Aguiar Rodrigues
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5120-0908
AFILIAÇÃO: Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, Brasil.
EDITOR 2: Dermeval da Hora Oliveira
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9303-5664
AFILIAÇÃO: Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, Brasil.
EDITOR 3: Jan Edson Rodrigues Leite
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9054-0673
AFILIAÇÃO: Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, Brasil.
EDITOR 4: Alvaro Magalhães Pereira da Silva
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1980-9750
AFILIAÇÃO: Instituto Federal de Sergipe, Sergipe, Brasil.
EDITOR 5: Erivaldo Pereira do Nascimento
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4595-1550
AFILIAÇÃO: Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, Brasil.
CARTA DE DECISÃO: Com base nas avaliações fornecidas, o artigo "O conceito freireano de leitura do mundo no live action de Branca de Neve" foi aceito para publicação por sua abordagem inovadora e multidisciplinar. A pesquisa é considerada autoral e pioneira ao aplicar o conceito de "leitura de mundo" de Paulo Freire para analisar a representação de sujeitos com nanismo no live action de Branca de Neve (Webb, 2025). A contribuição do trabalho se destaca ainda por sua Inovação Teórica; Contribuição para o Letramento Crítico; e Metodologia Inovadora. Assim, o artigo foi considerado relevante para publicação por sua originalidade, rigor teórico-metodológico e por oferecer uma contribuição significativa para a compreensão de como o discurso e a mídia constroem e perpetuam determinadas representações sociais.
Rodadas de Avaliação
AVALIADOR 1: Rafaelle de Freitas Oliveira Araujo
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6886-6236
AFILIAÇÃO: Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, Brasil.
AVALIADOR 2: Erivaldo Pereira do Nascimento
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4595-1550
AFILIAÇÃO: Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, Brasil.
RODADA 1
AVALIADOR 1
2025-08-01 | 01:02 PM
O artigo proposto é bastante inovador e propõe uma leitura crítica, a partir do conceito de leitura de mundo,de Paulo Freire, da representação do sujeito com nanismo no live action de Branca de Neve (Webb, 2025). É uma proposta autoral, pois além do conceito de Paulo Freire já citado, utiliza também para a análise argumentativa, Oswald Ducrot e Carel, e para a avaliação discursiva Pêcheux. A proposta de associação dessas teorias é relevante e permite o conhecimento global do objeto analisado, contribuindo assim para o letramento crítico, para o entendimento sobre a própria sociedade, investigando como a cultura midiática materializa argumentativamente esta representação.
O artigo proposto tem como objetivo analisar a representação do sujeito com nanismo no live action de Branca de Neve (Webb, 2025). Apresenta uma metodologia inovadora tripartida, a partir do conceito de leitura de mundo, de Paulo Freire, utiliza também para a análise argumentativa, Oswald Ducrot e Carel, e para a avaliação discursiva, os autores aplicam as lentes teóricas de Pêcheux. A proposta de associação dessas teorias é desenvolvida ao longo do artigo de modo consistentee, o que permite o conhecimento global do objeto analisado, contribuindo assim para uma leitura crítica desta representação, revelando os sentidos sócio-políticos codificados. Destacamos como pontos fortes do trabalho esta articulação teórica já mencionada, o olhar atento à representação dos sujeitos com nanismo e a crítica à perpetuação de estereótipos e à invisibilização de parcela da população.
Este trabalho tem um considerável potencial para impactar o modo como pesquisadores realizam a leitura dessas representações, uma vez que esta abordagem permite explorar o fenômeno argumentativo de modo mais completo, realizando a leitura, até mesmo, do que muitas vezes está invisível, como os sentidos sócio-políticos. Então, o seu modelo de leitura proposto será útil para as áreas de linguística, comunicação, sociologia etc. Já para os leitores, de um modo geral, oferece uma oportunidade de refletir sobre formas de estigmatização, sendo assim uma oportunidade para refletirmos sobre os mais diversos modo de exclusão.
AVALIADOR 2
2025-08-04 | 10:01 AM
O artigo apresenta uma leitura do nanismo em contos de fada, a partir dos estudos freireanos, da Semântica Argumentativa e da Análise do discurso, demonstrando como os sujeitos anões são ressignificados na Disney. Traz contribuições os interessados na leitura e na análise dos contos de fada e seu impacto na vida social.
O artigo objetiva apresentar uma leitura de sujeitos anões em contos de fada, tomando como corpus a live action de Branca de Neve (2025), a partir dos estudos de Paulo Freire, da Semântica Argumentativa e da Análise do Discurso. Para tal, adota a perspectiva metodológica da leitura precedente, leitura posterior e leitura contínua.
A perspectiva metodológica adotada permite uma correlação de como o nanismo é tratado no corpus analisado, que adota uma visão palhacesca do anão, diferente da visão mitológica do anão guerreiro.
Nesse sentido, a análise traz contribuições relevantes, por adotar um procedimento metodológico e de análise inovadora que permite desvendar sentidos construídos discursivamente em textos multimodais, a partir de uma visada linguístico-discursiva e histórica.
Resposta dos Autores
DOI: https://doi.org/10.25189/2675-4916.2025.V6.N5.ID828.A
RODADA 1
2025-10-03
Prezada Parecerista, boa tarde.
Informamos que realizamos todos os ajustes pela senhora sugerido, descritos nos 23 balões de comentários, de nosso artigo aceito “O conceito freireano de leitura do mundo no live action de Branca de Neve".
Acatamos, igualmente, seus ajustes ortográficos, ao longo do texto.